Por Maurício Palma Nogueira
Recente relatório divulgado por um consórcio de entidades, que estudam a ocupação do território brasileiro por diversas atividades, identificou queda de 15,7% na superfície de água entre os anos de 1991 e 2020. A análise comparou a superfície de água entre os períodos, usando imagens obtidas por satélite.
O relatório é específico em relação à superfície da água comparada. O objetivo não é explicar as causas e nem mesmo calcular o volume de água disponível. Embora seja necessário, o estudo precisaria ser muito mais complexo, abrangente, oneroso e demorado. A construção do conhecimento ocorre em partes, com a contribuição de diversas outras pesquisas, ainda que possam até parecer antagônicas num primeiro momento.
A ciência não é movida a consensos e nem dá espaço para crenças ou suposições impostas a partir das teses ou hipóteses que movimentam os estudos. Para isso há o método científico.
No entanto, de uns anos para cá, estudos como esse passaram a ser usados de forma inadequada. Coordenadores ou financiadores dos consórcios, que conduzem os estudos, usam algumas informações de forma sensacionalista em busca de holofotes com uma mensagem catastrofista. Num processo mágico de alquimia intelectual, a mensagem “perda de superfície da água” passa a ser “perda de água”.
E ai de quem contestar. Na melhor das hipóteses, será taxado de negacionista, a expressão da moda. Chega-se ao absurdo de articulistas renomados taxarem de céticos aqueles que citarem o El Niño ou La Niña como eventos de importância climática. Clamam para o plantio de árvores em um país que tem mais de 67% do seu território coberto por florestas. Será essa mesmo a causa? Pode até ser, mas precisa ser comprovado e não imposto como uma crença elaborada a partir de fragmentos de estudos que não se conversam.
Nesse caso específico, identificar a perda de superfície da água é apenas o primeiro passo do processo de explicação com base no método científico. É a identificação do problema. Resta entender as razões e, principalmente, identificar as soluções possíveis. Ir aos veículos de comunicação com suposições, soluções e posições políticas citando o estudo acabará gerando constrangimento aos pesquisadores sérios que o conduziram. Perde a ciência.
Diversas razões podem explicar a perda de superfície da água e nem todas são necessariamente eventos negativos. O aumento da evapotranspiração pelo ganho de produtividade agrícola é um dos exemplos. Trata-se da soma entre a evaporação de água pelo solo e a transpiração de água pelas plantas. Quanto maior for o ritmo de crescimento das plantas ou a área da superfície foliar, maior será a quantidade de água emitida à atmosfera, podendo, inclusive, reduzir o espelho d’água das áreas mais próximas. Interessante que a evapotranspiração é a base do conceito dos rios voadores, tão defendido pelos mesmos que usam de forma tão leviana o resultado de estudos sérios como o relatório em questão.
No mesmo período considerado no estudo, a produtividade de cada hectare dedicado à agropecuária aumentou 250%, considerando a soma de todos os produtos agrícolas e pecuários divididos por toda área disponível. É esperado que tamanha alteração no desempenho da área agrícola provoque aumento na evapotranspiração e, consequentemente, redução nos espelhos d´água.
É também durante esse período que os esforços para recuperar áreas de preservação permanente foram intensificados em todo território nacional. Além do efeito da evapotranspiração, a própria copa das árvores avançando sobre parte do veio d´água pode influenciar na redução da área de água observável por imagens de satélite.
Ainda nessa linha, o professor Fernando Campos Mendonça, que ministra disciplinas de Hidráulica e Hidrologia na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), citou um trabalho conduzido no Rio Araquá, na região de Águas de São Pedro (SP). A área ocupada pelo rio foi reduzida pela queda do assoreamento, um dos maiores problemas ambientais que podem impactar rios, represas e até a orla marítima.
Esse tipo de redução da superfície de água é benéfico, pois é consequência da redução dos efeitos da erosão, que podem obstruir o leito do rio provocando alagamento das áreas vizinhas.
E quantos outros casos semelhantes podem estar ocorrendo em outras bacias do Brasil?
Vale lembrar que a redução do escorrimento do solo para os rios, que causa o assoreamento, é umas das maiores contribuições ambientais do plantio direto, que substituiu o plantio convencional com sequências de aração e gradagem e extensos períodos de solos expostos antes do crescimento das plantas. Essa prática era raríssima no início dos anos 1990 e hoje já ocupa algo em torno de 40 milhões de hectares em todo o território nacional.
O fato é que o resultado do estudo não permite conclusões, como as que foram amplamente abordadas e difundidas na imprensa. Não retratam a verdade e não possibilitam quantificar a participação de causas positivas ou negativas para sua ocorrência. É praticamente certeza que ambas ocorrem com maior ou menor intensidade em diferentes regiões. Para identificá-las, é preciso estudar de forma mais aprofundada.
A ciência serve para buscar respostas, aumentar o conhecimento, embasar inovações e permitir soluções; seu objetivo não é ir em direção aos holofotes ou servir de mastro para bandeiras ideológicas. Usar a produção científica como blefe é uma prática muito mais nefasta do que o negacionismo.
Além de impedir o bom uso do conhecimento gerado pela ciência, o blefe contribuirá para sua desmoralização.
Maurício Palma Nogueira é engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária.