Por Fernando Cadore*
A Carta Magna é essencialmente um pacto, a manifestação do poder constituinte originário sob a égide da vontade popular, resultante do conjunto de crenças e ideologias de um povo na qual se estabelecem regras com a finalidade precípua de busca pela paz social. Portanto, expressa o mais alto grau de legitimidade e se traduz em comandos essenciais de estruturação da entidade estatal.
A Constituição Federal de 1988, a sétima do nosso jovem País, estabeleceu direitos fundamentais de caráter normativo, ou seja, de aplicabilidade obrigatória. A bem da verdade que por vezes esses direitos se chocam, graças a acomodação de ideologias, fato que não é anômalo, mas a marca inconteste do Estado Democrático de Direito. Quando esses conflitos surgem, cabe uma ponderação das garantias fundamentais envolvidas no caso concreto com vistas a equacionar as divergências, podendo, assim, uma ou outra ser relativizada, haja vista que não são absolutas. Embora a solução de conflitos demande apurada análise pelo juízo da causa, há um consenso em relação à primazia do princípio da dignidade da pessoa humana, que acaba funcionando como uma espécie de ponto de partida para a aplicação do direito.
No Brasil, um debate recente tem antagonizado correntes ideológicas com visões bastante rígidas. Refiro-me ao Recurso Extraordinário 1.017.365, com repercussão geral (Tema 1.031). Conquanto trate de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, o assunto tomou conta dos noticiários e das mídias sociais em face da questão central: o artigo 231 da CF/88 define como marco temporal para a demarcação de terras indígenas a data da sua promulgação, 5 de outubro de 1988, ou o conceito de direito originário pode ser considerado fundamento legal suficiente para afastar a temporalidade trazida pela redação constitucional sobre o direito de posse das comunidades indígenas às terras tradicionalmente ocupadas, uma vez que em tese este direito antecederia a própria República?
Embora respeite-se as opiniões divergentes, o Texto Constitucional em sua essência é a ruptura da estrutura política, econômica, social e institucional do Estado, um ponto de corte, ou se preferirem, o marco temporal de um pacto social acima do qual não há outro de magnitude superior. Sob o condão dessa supremacia formal e material, nenhuma outra norma ou constituição anterior, nem mesmo eventuais direitos adquiridos são capazes de denegar comandos do texto constitucional originário (versão original do texto promulgado), entendimento cristalizado tanto na doutrina quanto na jurisprudência da Suprema Corte. Quanto aos seus efeitos, salvo expressa disposição em contrário do próprio texto originário, sua aplicação cronológica converge com a data de sua promulgação, reforçando sua natureza de marco temporal de pacificação de conflitos sociais.
Tão sucintas e cristalinas foram as pretensões do Constituinte em relação à matéria que, além de ter um cuidado notório em definir o que seriam as terras tradicionalmente ocupadas, trouxe ainda no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 67, um comando para que a União realizasse a demarcação das terras indígenas até cinco anos a partir de sua promulgação, não deixando resquício de dúvida sobre o desígnio de balizamento da matéria. Importante frisar que a não completude do processo administrativo não enseja prorrogação desse marco temporal. Lembro ainda que nem mesmo o Supremo Tribunal Federal poderia realizar controle concentrado de constitucionalidade do referido dispositivo, uma vez que não lhe foi dada a competência constitucional de modulação do texto originário.
Acima de todos os impactos decorrentes da inexistência de critérios objetivos para a demarcação de terras indígenas, está a imperiosa submissão dos Poderes à ordem constitucional, sob o manto em que se deleitam a justiça e a paz social.
*Presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT)