Setor da moda e fazendas buscam o couro com ‘boas práticas’

14 de dezembro de 2022 7 mins. de leitura
Bem-estar animal e pecuária livre de desmatamento são O foco do programa internacional de mercado de crédito de couro

A pressão que a indústria da moda sofre em relação a compromissos com a sustentabilidade é a linha motriz de um projeto de couro sustentável que envolve pecuaristas brasileiros e grifes de moda globais. Por aqui, o programa é desenvolvido pela Produzindo Certo, plataforma que mede o nível de sustentabilidade e presta assistência técnica socioambiental a produtores rurais, e pela Textile Exchange, organização global sem fins lucrativos direcionada a gerar impactos positivos em temas ligados às mudanças climáticas. A iniciativa é liderada pela Leather Impact Accelerator (LIA).

No projeto, o pecuarista que adotar boas práticas na propriedade recebe um pagamento das empresas envolvidas com base no seu rebanho anual. Cada cabeça de gado que passa pela fazenda vale um crédito – como se fosse um crédito de carbono. Este é adquirido pela indústria da moda diretamente na plataforma da LIA e é chamado de “incentivos de impacto”. Os recursos investidos pelas empresas no projeto para fomento à adequação dos produtores são confidenciais. 

O programa brasileiro é o primeiro realizado no mundo, segundo o diretor de Operações da Produzindo Certo, Charton Locks. “Os créditos são comprados por empresas que querem fazer a compensação ambiental de sua cadeia. É uma estratégia para elas apoiarem a produção de couro sustentável e um programa de incentivo às boas práticas por meio de um mecanismo financeiro”, explica.  O projeto Couro Sustentável conta com suporte de empresas como a marca sueca H&M Group e Ralph Lauren.

PIONEIRISMO

Para a diretora de Integridade Industrial da Textile Exchange, Anne Gillespie, o Brasil é o começo do programa que visa a uma moda mais sustentável. Ela diz que a pretensão é expandir o projeto globalmente. “Vemos muito interesse nos incentivos de impacto da LIA por marcas globais nos mercados da moda, automotivo e mobiliário. Nosso objetivo é que o custo de preservar as florestas e de alcançar o bem-estar animal seja compartilhado de forma mais equitativa pelas duas pontas da cadeia de abastecimento”, afirmou.

Atualmente, o projeto está na fase de piloto, aplicado em cinco propriedades agrícolas do Centro-Oeste, o que envolve 50 mil animais. Mais uma nova auditoria está prevista para fevereiro e os produtores devem receber novo aporte financeiro para seguirem com as melhorias nas fazendas.

Na atual fase, são estabelecidas parcerias entre os criadores e a indústria, ou seja, os pecuaristas recebem capital para adequar as suas propriedades ao protocolo estabelecido com as marcas. No terceiro ano de projeto, esses pecuaristas devem estar totalmente adequados para serem certificados pelo bem-estar animal pelo LIA e já emitindo créditos de impacto de couro. Até o fim deste ano, a Produzindo Certo deve concluir a estruturação de um segundo projeto piloto com outras cinco a sete propriedades.

O mercado potencial do projeto é calculado em 1 milhão de animais, que já estão cadastrados na plataforma da Produzindo Certo. “Queremos que o projeto ganhe escala. A questão-chave é as empresas da moda demandarem o crédito de couro e se comprometerem com a aquisição do crédito dos pecuaristas, o que lhes permite avançar nas adequações. É uma oportunidade para apresentarmos nossa pecuária sustentável ao mundo”, comenta o diretor da plataforma. 

Os resultados do projeto foram apresentados recentemente em evento nos Estados Unidos para mais de 500 empresas do setor. Em abril, um grupo de marcas virá ao Brasil conhecer as fazendas participantes.

AMPLIANDO HORIZONTES

No longo prazo, a ideia, segundo Locks, é expandir o projeto para a cadeia física do couro, com a aquisição do produto sustentável pela indústria, o que exigirá rastreabilidade, sistema de crédito e certificação do produto. A expectativa é de que a comercialização física e regional do produto em volumes pontuais comece em três a quatro anos e que em cinco a dez anos esteja disponível para médias e grandes indústrias. “Estamos entusiasmados para fazer o projeto crescer no Brasil, inserindo o assunto de maneira propositiva junto ao produtor, e temos sinais positivos de demanda da indústria. A questão é o custo para adotar as melhorias porque, como o couro é um subproduto pecuário, o alto investimento necessário inviabilizaria o projeto”, afirmou. 

Gillespie, da Textile Exchange, vê as parcerias atuais como o início da jornada de rastreabilidade e sustentabilidade do couro. “Acreditamos que os incentivos de impacto e os créditos de sustentabilidade pagos pelas empresas aos produtores são uma forma de impulsionar a oferta e a demanda, permitindo que as marcas tomem medidas positivas imediatamente até que sejam capazes de rastrear suas cadeias de suprimentos até seus fornecedores”, avalia. 

Pecuarista em Barra do Garças tem receita adicional

O pecuarista Carlos Roberto Libera, 70 anos, de Barra do Garças, na Serra do Roncador (MT), é um dos participantes do projeto. A sua propriedade, a Fazenda Paraná, possui 19 mil hectares de floresta protegida em uma área total de 34 mil hectares. Lá ele aloja 12 mil cabeças de gado por ano em sistema de cria, recria e engorda, além de bubalinos, caprinos e suínos, e produz mel por meio de integração-lavoura-pecuária-floresta (ILPF).

Atento à sustentabilidade, desde 2007, Libera não derrubou nenhuma árvore a mais para abrir espaço para o pasto e plantou mais de 1 milhão de acácias no período, para recuperar o solo degradado. “Já possuíamos nota 88 de 100 na plataforma da Produzindo Certo. Já tínhamos espírito de produção orgânica, sustentável, de preservação e de bem-estar social junto aos colaboradores”, contou.

Mesmo com a referência consolidada em sustentabilidade, o pecuarista conta que precisou investir em melhorias no primeiro ano de projeto. Entre as ações, construiu um aceiro na propriedade, aperfeiçoou a prevenção da erosão, melhorou o controle de contaminação do solo, adquiriu equipamentos de combate a incêndio, adotou um curral antiestresse  para o gado e está construindo um refeitório. “Estamos migrando da marcação a fogo para o brinco eletrônico. Usar o brinco ainda é um pouco arriscado, do ponto de vista de segurança, mas é a forma que encontramos de não marcar a fogo. O próximo passo é instalar equipamento no cocho para leitura”, destacou. Ele também vai instalar sete projetos de energia solar na fazenda, o que deve ser concluído até o início de 2023. 

Libera afirma que vê no projeto uma forma de garantir uma receita adicional por suas práticas ambientais e de bem-estar animal acima da média, em um setor sujeito a frequentes oscilações de preços. “Criamos animais e vendemos pelo peso da arroba. Os frigoríficos ainda não pagam pelo couro. Vejo no pagamento um incentivo adicional para o produtor ter maior consciência ambiental e de bem-estar animal”, acrescentou. 

Gado bem tratado e fim do desmatamento são as bases da iniciativa

As principais exigências para uma propriedade receber a chancela de que produz couro sustentável são os cuidados com o bem-estar animal e o não desmate de áreas, mesmo que em porcentual permitido por lei, conforme o protocolo da LIA. A supressão de áreas após 1º de janeiro de 2020, áreas com embargo ambiental, fazendas com sobreposição em terras indígenas e o uso de bastão de choque nos animais são critérios de exclusão para o ingresso no projeto.

Outras obrigatoriedades são a necessidade de os funcionários passarem por treinamento de técnicas de bem-estar animal e um cuidado especial com a água e nutrição do gado. O programa exige também que os produtores definam um plano de redução da marcação a fogo ao mínimo possível (a marca de vacina da brucelose, por exemplo, é obrigatória por requisitos sanitários). Por meio do projeto, os produtores rurais recebem assistência técnica e treinamentos para evoluir nas temáticas.

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