“Governo vai cada vez menos financiar o agronegócio”

29 de setembro de 2021 10 mins. de leitura
Dessa forma, setor privado e também as cooperativas de crédito, além das agroindústrias, podem e devem atender à parcela de produtores desassistida com recursos do crédito rural

ENTREVISTA | Márcio Lopes de Freitas, presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB)

>>> Vinicius Galera

Estudos da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) apontam que o custo total de uma safra agrícola no Brasil gira em torno de R$ 1 trilhão. Neste ano, o Plano Safra, principal programa governamental de estímulo para o setor produtivo, ofertou apenas um quarto desse valor, ou R$ 251 bilhões. O presidente da OCB, Márcio Lopes de Freitas, diz, nesta entrevista exclusiva, que, apesar da incapacidade do governo de financiar a totalidade do agronegócio – setor que a cada ano incorpora mais tecnologia e demanda mais investimentos –, o plano de crédito agrícola subsidiado é importante para criar referência de mercado. É no financiamento privado, aliás, que principalmente os grandes produtores têm ido buscar crédito, tendência que deve se fortalecer nos próximos anos. Todos os anos a OCB, entidade que representa um dos setores mais dinâmicos e eficientes do agronegócio, participa da elaboração do Plano Safra. Mas Freitas acredita que essa política deveria ser baseada não apenas no crédito e no seguro rural, como é hoje. “O Brasil se tornou o segundo fornecedor agrícola do mundo, e tende a ser o primeiro. Nós precisamos de uma política agrícola mais ampla do que o plano de financiamento.” Veja a seguir os principais pontos da entrevista.

O que percebemos com muita clareza é que, a cada ano, o governo se torna mais impotente na capacidade de financiamento para as safras. Essa capacidade de ofertar recursos é extremamente limitada

A OCB teve um papel importante no desenvolvimento do Plano Safra. O que o plano atual, que vale de 1º de julho de 2021 até 30 de junho de 2022, significa para o cooperativismo?

Márcio Lopes de Freitas – Todos os anos nós participamos, com afinco, da elaboração do plano. Temos um grupo de trabalho permanente, composto por diretores financeiros de muitas cooperativas. É gente bastante focada nesse assunto, que estuda e trabalha alternativas de crédito. Durante o ano inteiro, fazemos um estudo e avaliamos as necessidades setoriais, onde estão os gargalos e o que está acontecendo com o sistema financeiro e o governo. O que percebemos com muita clareza é que, a cada ano, o governo se torna mais impotente na capacidade de financiamento. Temos noção plena que uma safra brasileira de todos os produtos custa seguramente mais de R$ 1 trilhão por ano. A capacidade do governo de me ofertar recursos é extremamente limitada. Tanto é que eu considero muito feliz a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, ter conseguido arrumar os recursos que arrumou. O governo não consegue atender 30% da demanda do crédito do financiamento, mas esse crédito é importantíssimo. Eu bato nessa tecla todo ano. É importantíssimo que existam o crédito rural e o Plano Safra, porque eles criam referência no mercado. Se perder as balizas do crédito oficial, eu fico sem margem. E eu nunca ouvi falar que banco nivela para baixo.

A insuficiência de recursos do plano leva a outros mecanismos de financiamento ou isso é uma tendência natural de mercado?

Hoje você realmente tem uma corrente complexa, com mecanismos de financiamento desenvolvidos pelo mercado, como o barter (compra de insumos com pagamento em grãos), além da utilização de outras ferramentas para atrair capital. Já tem gente financiando máquinas e implementos, inclusive as cooperativas de crédito. Elas captam dinheiro no mercado e aplicam na compra de máquinas e equipamentos, sem ter que utilizar recursos do BNDES, que era a única fonte de recursos para isso. Além disso, as cooperativas perceberam que a principal fonte de crédito, mais do que o governo, é a integridade. É preciso levar a transparência em conta. As cooperativas evoluíram muito nos seus balanços. Ou seja, não basta ser honesto, você tem que provar para o mercado que é honesto. O balanço tem que ser cada vez mais transparente. E o acesso à informação tem que ser livre, não só para o cooperado, mas para o mercado. Isso cria uma onda de confiança que facilita para as cooperativas ingressar no mercado de crédito agrícola.

Que ajustes ainda são necessários no Plano Safra? Por quê?

Uma briga que a gente já tem há alguns anos com o Ministério da Agricultura é que é preciso manter uma base do crédito rural ativa. Por isso, este ano nós fizemos essa conta. Desde o início, a nossa referência era suportar uma taxa de juros maior, mas ter um volume de recursos um pouco maior para a safra. Então nós aceitamos um aumentozinho na taxa de juro porque a Selic também subiu, mas era fundamental que a gente aumentasse ou pelo menos mantivesse o volume de recursos em bons níveis.

Eu prefiro que o governo gaste um pouco mais com a subvenção do seguro do que com a subvenção da taxa de juro da agricultura, porque aí eu desenvolvo uma cultura de seguro

O senhor também já mencionou o seguro rural. Por que ele é importante nessa equação do financiamento?

Para nós é fundamental que se melhore o seguro. É um outro fator muito importante. O mercado vai comprar muito melhor o meu papel se eu tiver seguro de safra. Eu prefiro que o governo gaste um pouco mais com a subvenção do seguro do que com a subvenção da taxa de juro da agricultura, porque aí eu desenvolvo uma cultura de seguro. Veja, em um ano como este, com problemas climáticos, fica mais fácil você vender seguro no ano seguinte, porque o produtor viu como ele é importante. Já há, por exemplo, cooperativas que fazem isso como uma questão de princípio. Na Coamo (cooperativa do Paraná considerada a maior da América Latina), 100% do crédito oferecido para o cooperado é com seguro. Ela faz uma engenharia própria de seguro. Aí você vê que o desempenho da Coamo e dos seus cooperados é melhor do que a média das cooperativas da região. Então todo mundo está querendo correr atrás porque tem essa garantia já desenvolvida. Eu só vou conseguir ter um seguro competitivo na hora em que houver uma cultura de seguro pelo menos em 70% da área plantada no Brasil. Hoje estamos longe, com pouco mais de 20%. Tem que crescer bastante.

É importantíssimo que existam o crédito rural e o Plano Safra, porque eles criam referência no mercado. Se perder as balizas do crédito oficial, eu fico sem margem.”

Há mais algum ajuste que o senhor aponte como necessário? O que é preciso mudar no perfil do crédito do governo? 

Tem muita coisa que é necessário transformar. Quando a gente fala no plano, um Plano Safra no Brasil, nós fazemos um plano anual. Ele é baseado basicamente no crédito e, agora, em um pouco do seguro rural. O Roberto Rodrigues (ex-ministro da Agricultura) foi quem começou a cultura do seguro. Hoje o País é o segundo fornecedor agrícola do mundo e tende a ser o primeiro. Nós precisamos ter uma política agrícola mais ampla do que o plano de financiamento. Eu estou estudando isso há alguns anos. Nos Estados Unidos, a Farm Bill (principal instrumento de política agrícola do país) tem um negócio fantástico, que prevê inclusive indenização para o produtor não plantar determinada cultura em casos de vazios sanitários obrigatórios, mas ter a renda sobre aquela cultura. É uma coisa muito ampla num país onde apenas 3% da população vive no meio rural. Eles têm uma grande capacidade de subsidiar a agricultura, mas veem todo um conjunto de operações e enxergam o mercado de longo prazo. E começam a trabalhar a lei com uma pesquisa de consumo. E vão pro supermercado entrevistar a dona de casa pra ver como é o comportamento do consumidor.

As cooperativas têm se destacado cada vez mais nessa obtenção de crédito pelos produtores. O senhor acha que a tendência é esse segmento aumentar e o produtor migrar naturalmente para um banco cooperativo? 

Eu não tenho dúvida disso. O cooperativismo de crédito nasceu basicamente no eixo rural. Hoje, as cooperativas ampliaram muito o leque de ações. Elas têm esses formatos singulares atendendo muitas vezes regiões onde nenhum banco quer estar. Nós estamos com 600 municípios onde só existem cooperativas de crédito. Nenhum banco se interessa, mas para nós é importante. Estou, além disso, propondo um processo mais compartilhado de dados. Nós vamos competir com o mercado financeiro. Isso tem avançado.

Como o senhor avalia o fato de o crédito, hoje, ser mais direcionado para custeio e comercialização de pequenos e médios produtores?

Quando você tem clareza da prioridade social de política pública, é mais do que natural que isso aconteça. Se você tem pouco cobertor, vai cobrir quem tem mais vulnerabilidade e dificuldade de fazer uma negociação no mercado. Então é natural ter uma cobertura maior para esse perfil. Mas nas cooperativas nós trabalhamos de uma maneira que eu tenho que arrumar crédito para todo mundo. Então eu vou ter que buscar atender o eixo pequeno dentro da faixa dele, mas também ir ao mercado buscar outra fonte de recurso pra financiar e ajudar o produtor de médio porte.

“Acredito que o movimento cooperativista tem organização suficiente pra dar as respostas que o mercado cobra. O sistema tem condição de oferecer mais rastreabilidade, mais sustentabilidade em qualquer lugar”

Qual é a participação das cooperativas nas exportações e na balança comercial brasileira? E que futuro o sr. vê para o setor cooperativista no mercado externo, principalmente a China?

Eu acredito que o movimento cooperativista tem organização suficiente pra dar as respostas que o mercado cobra do fornecedor. O sistema tem condição de oferecer mais rastreabilidade, mais sustentabilidade em qualquer lugar, inclusive na China, e continuar surfando a onda asiática. Mas acho que, muito brevemente, nós vamos ter a volta para os mercados europeu e americano. Não dá pra ficar sem a produção de alimentos brasileiros. Então acho que a China é um “mercadaço”, e nós temos que aproveitá-lo bem. Mas também temos de focar na retomada de mercados tradicionais. Para isso, vamos ter que cumprir regras de sustentabilidade, de preservação, que tomar atitudes para vender a imagem do Brasil lá fora. E não é com discurso, e sim com atitudes. O agropecuarista brasileiro está disposto a isso. Se a imagem o País está ruim é por-que nós estamos fazendo bo-bagem. Então vamos acabar com as bobagens.

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